Tivemos acesso ao Acórdão da Corte Suprema di Cassazione Italiana, equivalente ao nosso Supremo Tribunal Federal, ao julgar recurso de advogado contra a tese da Grande Naturalização, que vinha sendo utilizada para negar o reconhecimento da cidadania ius sanguinis aos requerentes brasileiros.
O chamada Grande Naturalização partiu de um decreto do Governo Provisório da República do Brasil, de 1889, o Decreto 58 A, composto de 5 artigos, que tornava cidadão brasileiro todo estrangeiro residente no Brasil naquele momento.
Caso quisesse renunciar a nacionalidade brasileira e manter a sua nacionalidade de origem, o imigrante poderia manifestar sua vontade em um cartório, em um prazo de seis meses após a publicação do decreto.
Acontece que muitos imigrantes não tinham acesso fácil à informação, muito menos ao decreto que estava retirando seus direitos de cidadãos italianos. Ou seja, a possibilidade de manifestação até existia, mas definitivamente isso não chegava aos maiores interessados que muitas vezes sequer dominavam ainda o idioma português.
Isso significa que, além da nacionalidade brasileira ter sido imposta pelo Governo Provisório, a maioria dos imigrantes italianos nem ao menos soube que estava perdendo sua nacionalidade de origem ao se tornar, compulsoriamente, cidadão brasileiro.
A implicação disso é que para os processos ius sanguinis, nos quais o Dante Causa (antenato) se estabeleceu no Brasil no período de vigência do decreto, isto é, entre os anos de 1889 e 1891, e que os filhos tenham nascido em território brasileiro antes de 1912, ano da primeira lei ordinária italiana que tratou da dupla cidadania, seriam recusados, já que o Dante Causa seria considerado brasileiro a partir disso.
Isso daria ao decreto um poder superior ao da legislação italiana.
Em 1907, a Corte di Cassazione de Napoles considerou que a falta de uma manifestação de renúncia não provava que o italiano estava de acordo em ser naturalizado brasileiro, além disso, o decreto vinha de uma república ainda não reconhecida internacionalmente como legítima, o que seria o bastante para enterrar a questão, preservando a soberania da lei italiana sobre qualquer anulação de direitos de seus cidadãos por imposição de outras nações.
No entanto, em 2019 a questão da grande naturalização foi levantada pelo Ministero dell’Interno na tentativa de indeferir pedidos de cidadania italiana jus sanguinis via Tribunal de Roma.
Apesar de o tribunal ter rejeitado essa tese, o Ministero dell’Interno, representado pela Avvocatura dello Stato, continua apelando contra a decisão em novos processos de cidadania via judicial, o que acaba dando trabalho extra aos advogados representantes de requerentes do direito à cidadania italiana, nos mesmos tivemos que recorrer de algumas poucas decisões.
O julgado a que tivemos acesso joga uma pá de cal nesse assunto e traz uma verdadeira lição sobre os direitos de personalidade, sobre a cidadania italiana, sobre os limites jurisdicionais de cada Estado, e afasta que uma ficção jurídica, alienígena, quebre esse vínculo de sangue.
O ordenamento jurídico italiano, com relação à aquisição da cidadanis ius sanguinis segue praticamente inalterado, desde o código civil de 1865 até a lei 555/1912 e 91/1992.
A decisão garante que os descendentes de italianos que migraram para o Brasil possam requerer o reconhecimento da cidadania sem a sombra do fantasma da Grande Naturalização.